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Audiencia do site

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DOIS PARA O SAGUÃO

Personagens:
AZEVEDO
BIANCA

Bianca é atriz e procura apartamento. Chove. Ela está isolada na portaria de um prédio onde foi procurar imóvel. Azevedo é o porteiro do final de tarde. Ela não tem mais permissão para ver imóvel algum, pelo horário. Ela está impaciente, ele faz algumas ações do seu personagem, rega planta, arruma tapete, coisas assim.

Época: atual
Ação: o saguão de um prédio
....
BIANCA
Não tem mais como?
AZEVEDO
Tem não.
BIANCA
Nenhum apartamento?
AZEVEDO
O horário já bateu. Não pode ver mais nenhum.
BIANCA
Nem kitchnete?
AZEVEDO
Não tem kitch neste prédio.
BIANCA
Entendo. (tempo. Fica impaciente) E essa chuva, não pára mais, é?
AZEVEDO
Acho que não, moça. Foi todo o feriado assim.
BIANCA
Que bosta. Ops. Desculpe.
AZEVEDO
Tudo bem.
BIANCA
Na sua função você não pode dizer palavrão, né?

AZEVEDO
Não.
BIANCA
Nem o pessoal que mora no prédio?
AZEVEDO
O pessoal diz.
BIANCA
Tipo o quê? Que palavrão, por exemplo?
AZEVEDO
Não posso dizer.
BIANCA
Ah, é. (tempo) E se eu disser?
AZEVEDO
Não pega bem palavrão na boca de mulher.
BIANCA
Quem disse isso?
AZEVEDO
Todo mundo diz.
BIANCA
Todo mundo quem?
AZEVEDO
Todo mundo, oras.
BIANCA
Quem, por exemplo?
AZEVEDO
Os caras lá no boteco.
BIANCA
Eles devem falar palavrão adoidado.
AZEVEDO
O tempo todo.
BIANCA
E você fala palavrão quando tá lá com eles, aposto.
AZEVEDO
Tem que falar, né?
BIANCA
É...Em Roma como os romanos.
AZEVEDO
Quê?
BIANCA
Nada. É só uma expressão.
AZEVEDO
Ah.
(silêncio)
BIANCA
Qual o seu nome?
AZEVEDO
Azevedo.
BIANCA
Só isso? Azevedo?
AZEVEDO
É assim que me chamam.
BIANCA
Quem te chama assim? Os caras lá no boteco?
AZEVEDO
Também.
BIANCA
Também? Tem mais gente que te chama de Azevedo?
AZEVEDO
Minha mãe.
BIANCA
Tua mãe te chama de Azevedo?
AZEVEDO
Ela que espalhou meu nome. E fiquei sendo Azevedo.
BIANCA
Tua mãe?
AZEVEDO
É.
BIANCA
Foi em homenagem ao teu pai? Ele é que é Azevedo?
AZEVEDO
Não. Azevedo foi o último namorado dela.
BIANCA
Entendi ... (tempo) Eu sou atriz.
AZEVEDO
Tá em alguma novela?
BIANCA
Ainda não. Nem sei se quero. Faço teatro e já fiz alguns curtas.
AZEVEDO
Não fez novela?
BIANCA
Não.
AZEVEDO
Nenhuma?
BIANCA
Não.
AZEVEDO
Ah.
BIANCA
Por quê? Você vê televisão? Tem televisão aí, no balcão?
AZEVEDO
Tem não.

BIANCA
Por quê? Não te deixam ver TV?
AZEVEDO
Não. A última vez que vi jogo do Brasil na Copa eu dormi. E aí me tiraram a TV.
BIANCA
Você não pode dormir, né?
AZEVEDO
Não.
BIANCA
(ri) E você dormiu com jogo do Brasil na Copa?
AZEVEDO
Pra você ver.
BIANCA
(para de rir) Entendo. (tempo) Eu já fiz comercial.
AZEVEDO
De cerveja?
BIANCA
Não. De locadora de automóveis. Daquelas grandes, sabe?
AZEVEDO
Nunca vi.
BIANCA
Você tem carro?
AZEVEDO
Não. Eu venho de ônibus, pro trabalho. Às vezes venho de bicicleta.
BIANCA
Por isso você não vê comercial de locadora de carro.
AZEVEDO
É.
(silêncio)
BIANCA
Você é casado, Azevedo? Posso te chamar assim, de Azevedo?
AZEVEDO
Pode. Mas não sou casado, não. Sou amasiado.
BIANCA
Amasiado.
AZEVEDO
É. Eu vivo com uma mulher.
BIANCA
Ela faz o quê?
AZEVEDO
Atriz é sempre curiosa, desse jeito?
BIANCA
Eu sou curiosa. Tua mulher faz o quê?
AZEVEDO
Ela não é minha mulher. É amasiada.
BIANCA
Ah.
AZEVEDO
Ela cozinha num restaurante por quilo.
BIANCA
E é tua amasiada por quê?
AZEVEDO
Cê é curiosa, hein?
BIANCA
Sou mesmo.
AZEVEDO
A gente tá esperando o momento certo pra se casar.
BIANCA
Momento certo? Que momento certo?
AZEVEDO
A hora de juntar os trocados.
BIANCA
A vida é curta, Azevedo. Se não casar, fica pra titio. Você daria um bom titio, Azevedo?
AZEVEDO
Sou filho único.
BIANCA
E mesmo assim tua mãe te chama de Azevedo?
AZEVEDO
É.
BIANCA
Por causa do ex dela?
AZEVEDO
É.
BIANCA
Ah, pelo amor de Deus! Que é isso!
AZEVEDO
Sou Azevedo e pronto.
BIANCA
Claro que não! Ninguém é “Azevedo e pronto”! Qual o teu primeiro nome?
AZEVEDO
Pelópidas.
(tempo)
BIANCA
É melhor Azevedo, mesmo.
AZEVEDO
Não falei?
(silêncio)

BIANCA
Posso te chamar de Pelópidas?
AZEVEDO
Não. Eu sou Azevedo.
BIANCA
Se eu te chamar de Pelópidas, você me responde?
AZEVEDO
Não. Já me acostumei com Azevedo.
BIANCA
Entendo. (tempo) Sabe quem era Pelópidas?
AZEVEDO
Não.
BIANCA
Um ator famoso. O Paulo Gracindo, lembra dele? Ele era Pelópidas. Aí ele trocou o nome.
AZEVEDO
Que nem eu.
BIANCA
Mas no caso dele, ele já era ator, sabe? E ninguém ia chamar ele de Pelópidas isso, Pelópidas aquilo. “O grande ator Pelópidas tal coisa”. Não. Ele trocou o nome.
AZEVEDO
O meu foi minha mãe que trocou.
BIANCA
É, eu sei. No caso dele, até as pessoas chamavam ele de outra coisa. Teve uma empregada que chamava ele de “Seu Petrópolis”.
AZEVEDO
Ninguém sabe o meu nome. Só a senhorita.
BIANCA
Senhorita? Que bonitinho. É difícil um cavalheiro chamar uma dama de senhorita, hoje em dia. Aposto que você não usa nem internet, não é? Você sabe o que é internet, Pelópidas, ops....Desculpe...Azevedo?
AZEVEDO
Sei. Um cara da internet vem instalar nos apartamentos quase toda semana. Ou vem fazer reparo.
BIANCA
Mas você nunca acessou? Quer dizer, nunca entrou na internet? Você tem computador?
AZEVEDO
Na administração do prédio tem computador. Eu mesmo nunca mexi num.
BIANCA
Que dó.
AZEVEDO
Que dó nada. O pastor lá na Igreja diz que computador é coisa do demo.
BIANCA
Você acredita nisso?
AZEVEDO
Se o pastor disse.
BIANCA
Mas isso é o pastor dizendo. E você, mesmo, o que acha?
AZEVEDO
Eu acho isso que o pastor disse.
BIANCA
Tá.
(silêncio)

BIANCA
Essa chuva não pára, né?
AZEVEDO
É.
BIANCA
Vem pouca gente aqui nesse prédio.
AZEVEDO
É feriado. Não tem ninguém na cidade.
BIANCA
Mas uma cidade tão grande. Com tanta gente, tanto carro...(tempo) E você... você já fez alguma perversão, Azevedo?
AZEVEDO
Se eu fiz o quê?
BIANCA
Alguma perversão. Uma perversãozinha, assim, de vez em quando nessa sua vida.
AZEVEDO
Fiz não. É pecado, o pastor disse.
BIANCA
Ah, mas esse pastor não sabe toda a verdade da vida, não.
AZEVEDO
Claro que sabe. Ele lê muita coisa.
BIANCA
Mas não é tudo o que tá escrito que é verdade, Azevedo.
AZEVEDO
Que conversa, essa.
BIANCA
Se você fizesse alguma perversão, que perversão faria?
AZEVEDO
Eu não posso pensar nessas coisas, não, moça.
BIANCA
Me chama pelo meu nome. Meu nome é Bianca.
AZEVEDO
Não é costume aqui do prédio chamar as pessoas pelo nome.

BIANCA
Chama do quê, então?
AZEVEDO
De senhor, de senhora, de senhorita.
BIANCA
Afe. Quem determinou isso?
AZEVEDO
São as regras.
BIANCA
Nossa, mas que prédio mais rigoroso. Ainda bem que não consigo alugar apartamento aqui, tá muito caro. Já pensou se eu alugasse e viesse morar aqui? Credo! Nem gosto de pensar!
AZEVEDO
É um bom prédio, esse.
BIANCA
É muito rigoroso! Pra quem gosta de ser chamado de senhor, de senhora ou senhorita, tá bem, mas não pra quem não tá acostumada...Feito eu.
AZEVEDO
Então não daria certo, mesmo.
BIANCA
É. (tempo) Mas você enrolou, enrolou, desviou e não respondeu à minha pergunta. Então, Azevedo, que perversão você faria?
AZEVEDO
Nenhuma.
BIANCA
Nenhuma? Nenhuminha? (aproxima-se) Assim, nem uma perversãozinha? No final de uma tarde, uma chuva danada lá fora, com tanto apartamento vazio lá em cima, de dois quartos, sem móveis, e eu aqui, uma pobre coitada sem teto e sem casa, procurando imóvel. Não te dá nenhuma vontade? Você não pensa em nada disso, não?
AZEVEDO
Pensar eu penso, que sou homem!
BIANCA
Ahá! Chegamos a um denominador comum!
AZEVEDO
O quê?
BIANCA
Você, porteiro da tarde, Azevedo Pelópidas, ou Pelópidas Azevedo, sei lá, e eu, atriz, Bianca Matheus, brasileira, adulta e vacinada e sem teto...Não te passa uma vontade, às vezes, quando você vê uma mulher bonita feito eu, assim? Uma vontade louca de transgredir, de fazer uma loucura que você nunca fez e de que vai lembrar pra sempre nessa sua vida de bosta?
AZEVEDO
A senhorita tá passando bem?
BIANCA
Porra! Me chama de Bianca, caralho! Esse é o meu nome, Pelópidas!
AZEVEDO
Azevedo, por favor.
BIANCA
Humm...(aproxima-se, lânguida) Tá ficando enfezadinho, é?
AZEVEDO
Eu vou ter que colocar a senhorita pra fora do prédio...
BIANCA
Por quê? O que eu fiz? Eu te apontei uma arma? Te machuquei? Te xinguei, por acaso?
AZEVEDO
Não é o que a senhorita fez, mas é o que a senhorita tá pensando em fazer.
BIANCA
Bianca, porra! Custa me chamar de Bianca?
AZEVEDO
Eu vou ter que expulsar a senhorita.
BIANCA
Expulsar por quê? Só porque eu disse “porra”?
AZEVEDO
A senhorita sabe que não.
BIANCA
Bianca.

AZEVEDO
(corrige) Bianca.
BIANCA
Então é pelo quê? Hummm.....Você está ficando excitado com toda essa minha conversa, né? Tá todo excitado, aí, posso até ver...Humm...Eu, uma branquelinha linda, assim, no final de tarde, dando sopa na sua portaria, no saguão desse prédio de apartamentos caros, um monte de apartamento vazio lá em cima, cheio de quartos, com banheiras, com janelas que dão pros outros prédios...Convidando você pra uma perversãozinha no meio de um feriado com chuva...
AZEVEDO
Eu vou ter que expulsar a senhorita...
BIANCA
Experimenta! Toca em mim! Me pega! Me arrasta pra fora!
AZEVEDO
Eu não costumo machucar mulher.
BIANCA
(irônica) Oh... (aproxima-se ainda mais) Um homem cavalheiro...Daqueles tão cavalheiros que vê uma oportunidade passar embaixo da sua fuça e não pega... E depois vai pra casa, e pra não pensar nisso, vai dar uma com a mulher...
AZEVEDO
Amasiada.
BIANCA
Tá, que seja. Com a amasiada...E aqui mesmo, nesse saguão, já que você não tem nem TV e nem ninguém a não ser eu? Não te passa nada pela cabeça não, Pelópídas?

AZEVEDO

Azevedo, por favor.
BIANCA
E se eu transgredir e te chamar de Pelópidas, você vai fazer o quê comigo? Vai me bater? Vai me expulsar daqui nessa chuva toda? Ou eu posso entrar nos elevadores e subir lá pra um dos apartamentos vazios e você nem vai saber onde me encontrar?
AZEVEDO
Eu tenho todas as chaves aqui comigo.
BIANCA
Que excitante... (parte pra cima dele) Um homem sem transgressão. Com todas as chaves do prédio. Um homem com acesso, com mulher amasiada, com mãe que batiza ele com sobrenome do namorado, que não vê TV nem comercial de locadora de carro, que não entra na internet, que não faz o que tá pensando só porque o pastor assim determina...
(AZEVEDO agarra BIANCA e tasca um beijo nela, solta ela em seguida, limpa os lábios com a manga comprida da camisa, ela jogada no chão olha pra ele, se desconcerta)
AZEVEDO
Melhor a senhorita ir embora.
BIANCA
É. Senão você me ataca aqui mesmo, nesse saguão. E vou me embora nessa chuva toda. Vou ficar toda molhada, vou pegar uma gripe daquelas, e tudo por culpa desse teu beijo de merda.
AZEVEDO
Eu vou pedir perdão ao pastor.
BIANCA
Vai ter que fazer mais do que isso. Você vai trepar com sua amasiada, hoje à noite, pensando em mim. E quando você ligar a TV e me vir no comercial da locadora de carro, não vai nem poder contar pra ela, nem pros seus amigos do boteco, que me deu um beijo. Ninguém vai acreditar em você. Sorte a sua que esse prédio aqui não tem câmera, senão a coisa ia complicar ainda mais pro teu lado, Pelópidas. Ops. Desculpa. Azevedo.

(ele faz menção de ir em direção a ela, de novo)
BIANCA
(afasta-se) Tá bem. Eu vou agora. Mas fique sabendo que você jamais irá se esquecer de mim. Nem que o seu último pensamento esteja quase vomitando por sua cabeça, mesmo assim eu me vou. Obrigada, viu, Azevedo? Tchau, Azevedo.
(sai)

(tempo)

AZEVEDO
(pega o celular, liga) Mãe? Oi, minha mãe. Sou eu, seu filho, Pelópidas. (...) Não, mãe! Não, Azevedo não! Puta que pariu! Meu nome é Pelópidas, minha mãe! Pe-ló-pi-d...(ela desliga)...Mãe? ...Mãe?.... Mãe?
(blecaute)
FIM

DAS HORAS CRUAS

Personagens:

AMAURI, homem maduro
MALU, jovem garota
Época: atual
Local: uma metrópole
A ação se passa no atelier do artista, enquanto ele a desenha.
Um atelier sem limites entre o hoje e o vento. O som é de Chet Baker.
....






MALU
A malha fina entre o teu desejo e a minha pele te remete aos teus sonhos.
AMAURI
Eu não desenho sonhos.
MALU
Até ontem. Hoje você é o escritor das formas. Me seduz e me cobre de vontade.
AMAURI
Você seduz.
MALU
Eu me atenho, apenas.
AMAURI
Você fez amor comigo.
MALU
Ainda não. Eu pulei para a carne de tua realidade, só isso. Eu permiti duas ou três iniciativas. Duas ou três. Você bem que soube aproveitar.
AMAURI
E agora te desenho.
MALU
E agora me desenha. Mas eu não paro, você sabe.
AMAURI
Isso. Anda.
MALU
Teu universo criativo.
AMAURI
Anda por entre as florestas.
MALU
Eu caminho por entre as velas acesas.
AMAURI
No meio da videira.
MALU
A videira.
AMAURI
Te posso sentir assim, meio cabernet.
MALU
Eu desando para você. Faço pose e admito que você me esquadrinhe. Eu me sinto assim, uma Mona Lisa.
AMAURI
Gioconda.
MALU
Abaporu.
AMAURI
Nascimento de Vênus.
MALU
Sou Rosa Luxemburgo e sou Pagu.
AMAURI
Pode se vestir agora. O vento não lhe cai bem.
MALU
Sou Olga e sou Anne Frank.
AMAURI
(joga o roupão para ela) Amsterdam é triste.
MALU
É nada.
AMAURI
Chet Baker morreu lá. Pulou.
MALU
Ao lado do sax. Ninguém morre triste em Amsterdam ao lado de um sax.
AMAURI
Veste.
MALU
Eu sigo até você. Olho, me insinuo, te deixo, te engano.
AMAURI
Eu vou te levar a Amsterdam.
MALU
Não. Se você me levar até lá, vai me mostrar onde ele morreu. Não quero.
AMAURI
Eu te quero.
MALU
Eu sei. Por isso te provoco. Por isso me provoco. (veste-se) Minha nudez nada mais é do que a tua imaginação jogando a toalha.
AMAURI
Uma luta?
MALU
Não. É um decolar de emoções. Eu sou mulher. Conheço isso desde que me dou por gente.
AMAURI
Me atiça.
MALU
Isso é uma ordem ou uma afirmação?
AMAURI
Você é Cleópatra.
MALU
Então me morde e me mata.
AMAURI
Já pensou em morrer?
MALU
O tempo todo. Quando não penso nisso, é por que eu tô te seduzindo.
AMAURI
Você é o meu sax?
MALU
Não.
AMAURI
O que é você, então?
MALU
Partitura. A música que eu apresento tem pizzicatos e codas.
AMAURI
Um acorde?
MALU
Não acorde. Deixa que eu mesma te absorva.
AMAURI
Quer um vinho?
MALU
Quero você, antes de tudo. Você perturba a sua própria paz. Você me traz aqui, me atrai, me desperta, me incomoda. Faz tudo o que eu quero. Faz mais do que isso. Me atrapalha.
AMAURI
Meia taça?
MALU
O teu brinquedo não cansa. Quero você nu.
AMAURI
(olha ela pelo vidro da taça, segue como se a filmasse com a taça de vinho) O aroma do cabernet atiça todas as sombras.
MALU
A cidade lá fora não sabe da gente. Você não sabe da gente. Tudo o que você tem sou eu e essa taça. Agora me engole, me degusta, me cheira. Me bebe.
AMAURI
Malu.
MALU
Sem nomes. Lá fora sou Maria Lúcia. Aqui não sou nada além de um vestígio de teu lápis. Fica nu pra mim.
AMAURI
Sou Amauri, mas você me quer outro.
MALU
Nada de nomes. Não sei quem somos. (para a platéia, com foco sobre ela) Dia desses, ele me quis confidente. Fui. Noutro dia, ele me despiu eu estando louca. Uma louca, ele disse. Daquelas que se arrebentam nas pedras. Lembrei logo de Camille. Era a última das loucas. Todas as mãos e os pés são de Camille. Ele pretendeu que nós dois nos amássemos no brilho da lua. Eu falei que não tinha lua, que a lua era uma abstração. Eu me apaixonei, mas não podia demonstrar. O homem maduro te deixa impune, você dá a ele a licença poética para ele te ensinar o que não é ensinável. Eu nem sei se essa palavra existe.
AMAURI
(foco nele) Em Amsterdam não existe.
MALU
(ainda, para a platéia) Eu queria ser Anne Frank e escrever o diário. (apaga o foco dele) Quem sabe eu escreveria até dentro da câmara de gás. Eu sou bem louca para essas coisas. Faço um solilóquio, mas são meus pensamentos que me deixam sem fôlego. Uma guria, disse ele. Uma jovem que cai ao chão toda vez que o tiro corre solto. A bala perdida é o amor que te devora. Ela te penetra as carnes, os músculos, te deixa vulnerável.
AMAURI
(foco nele) Uma guria.
MALU
O homem maduro nada mais é do que a lua. Tem jeito de noite, é abstração. (apaga o foco dele) Faço o solilóquio e percebo que tudo em minha volta se resolve em cantos e velas que quase acendem. Quando a bala te alcança, ela não mede esforços. Ela te agride, te maltrata, te lambuza de medo e noites lindas. Aí vem o dia e te conta histórias. E então você não sabe mais em quem acreditar.
(luz geral retorna)
AMAURI
Até ontem eu tinha um merlot. Comprei uns queijos, mas não tinha a combinação certa.
MALU
Você está me contando isso por quê?

AMAURI
Quero justificar a falta sua ontem à noite, por isso eu tinha a combinação errada.
MALU
E hoje é a certa?
(encerra a música)

AMAURI
O que eu aprendi com você?
MALU
Que não é tão chato assim morrer em Amsterdam com um saxofone ao lado.
AMAURI
Eu disse para mim que fazendo amor contigo hoje seria sufocante.
MALU
Gostei.
AMAURI
Que eu te mataria aos poucos em meus traços, e não deixaria pedra sobre pedra daquilo que eu sei de ti.
MALU
Agora fica nu para mim.
AMAURI
Eu sonhei te beijando, você colorida de todos os matizes, você impregnada de grafite e borracha, você consumida pela ânsia de me deitar, de beijar meu peito, minha pele, de me colocar miserável.
MALU
Você me mataria?
AMAURI
Penso que não.
MALU
E admite que eu suma de sua vida? Que eu brinque de você e pose para teus olhos que não me vêem mais? Que eu partilhe sua perda de gênero homem, quando ganha o gênero hominídeo?
AMAURI
(foco apenas nele, ele para a platéia) Eu não sou Rodin nem sou Botero. Deixo as tintas aguadas para Monet. Meu pontilhismo me alcança à noite, sou dor e é só. A mulher marca presença ao som de Chet Baker só porque Chet Baker pede isso, a música meio que embala um pedido.
MALU
(foco nela) Ei, garçom. Chet Baker. (começa outra faixa de Chet Baker)

AMAURI
O amor que você faz com a garota dos teus delírios é quem leva teu lápis. À noite, na sua cama vazia, a música perpassa as idéias, ela chama o corpo para você, ela chama o corpo até você. (ela se olha num espelhinho) A imaginação brinca com o teu sexo, ela te consome como a segunda parte da música.
MALU
(foco nela) Fica nu pra mim. (apaga o foco dela)
AMAURI
Sem nomes, ela disse. O corpo dela não tem nome, não tem RG. O endereço se perdeu no bolso, o celular não tinha crédito e o e-mail não foi anotado. Só uma garota, no travesseiro. Ela se vira para ser abraçada. Uma guria, eu disse. E aquela pele perseguida em volteios e partes que não se completam é tudo ao mesmo tempo. Para o homem, as curvas são o sinal de bom corpo, de boa prole. Para a guria, a menina, a jovem, nada mais é do que artifício. E ela é a guia para todas as estradas possíveis.
(luz geral)

MALU
Quando vamos fazer amor que nem ontem?
AMAURI
Dança comigo?
MALU
Você e Chet Baker. Por que não muda de faixa?
AMAURI
Meu gosto te inferniza?
MALU
Contanto que você não me leve a Amsterdam.
AMAURI
Vou te levar ao lugar crucial.
MALU
(beija-o) Não.
AMAURI
Malu.
MALU
Sem nomes.
AMAURI
Quer me ouvir dizer “eu te amo”?
MALU
Quero, mas só quando você estiver dentro de mim, preso e miserável.
AMAURI
Quero teu e-mail.
MALU
Nunca.
AMAURI
Me passa o teu celular.
MALU
Enlouqueceu.
AMAURI
Quero te levar até tua casa.
MALU
Vou fugir daqui.
AMAURI
Vou rir de tuas fotos, vou conhecer teus bichos de pelúcia, falar contigo no MSN.
MALU
Escuta aqui, eu sou teu brilho de vida, eu sou teu sopro de vontade, tua coisa que pulsa. Não é pra me moldar, não. Não é assim que eu funciono.
AMAURI
Vou morrer de tesão, pela manhã.
MALU
Eu sei. Você me come com os olhos e me fatia em porções miúdas. Morde meus ombros, meu peito te acaricia e teus dedos são automóveis.
AMAURI
Você é uma cidade.

MALU

Nem tanto. Sou apenas uma estrada vicinal que você percorre à noite, com farol de milha.
AMAURI
Quer mais vinho?

MALU
Quero você. E não penso em competir com ninguém.
AMAURI
Sem nomes, você disse.
MALU
Nossas regras são simples: há uma cidade lá fora, uma metrópole em que centenas, se não for milhares, milhares de casais estão na coesão de seus desejos neste exato instante.
AMAURI
Você fala bonito.
MALU
Aprendi contigo, mas não admito isso na tua frente que é pra não te deixar pior do que eu te encontrei.
AMAURI
Fala mais.
MALU
Teu universo criativo me atordoa. Tuas velas e caminhos aquáticos, tuas florestas me engalfinham. Eu nem sei bem o que somos, o que pensamos das coisas direito. Eu chego aqui, mostro o meu seio, você o acaricia e o beija assim que abre a porta. Eu entro, você me despe e me desperta em beijos.
AMAURI
Continua.
MALU
No instante seguinte, meus pêlos pubianos são tua realidade, apenas. Nada além deles. Tudo o que eu digo de novidade do mundo externo não conta.

AMAURI

Sem nomes, você disse.
MALU
Eu nua, você munido de tesão. O chuveiro despeja água sobre tudo o que somos, e você me acaricia, me enlaça, me penetra brincando. Brincando de mim.
AMAURI
Vou te levar pra Búzios.
MALU
Melhor que Amsterdam, nesse momento. E se os holandeses me prenderem por meia hora numa saleta de aeroporto, o que eu faço? Digo que sou tua e eles me expulsam diretamente para os teus braços? Digo que sou tua e me jogo de costas na cama para você me encontrar inteira?
AMAURI
Se eu tivesse um mapa da tua emoção, um guia das ruas dos teus sentimentos...
MALU
Um mapa não adianta. Você não me desvenda e eu te devoro.
AMAURI
Diga que é minha e eles te expulsam.
MALU
Digo que sou tua e eles carimbam assim no meu passaporte: “persona mais do que non grata”.
AMAURI
Eu te conto as histórias que me contavam quando eu quis viajar.
MALU
Eu sei. E você me leva até Amsterdam nos teus sonhos.
(encerra Chet Baker)

AMAURI
Eu fico nu pra você.
MALU
Não duvido. Eu te completo.
AMAURI
Vou te levar a Belfast. Você vai adorar Positano. Vamos dormir em Zurich e brindar nossas taças no Kremlin.
MALU
Me desenha.
AMAURI
Mais um?
MALU
Eu deito na sua cama, primeiro. E daí você relaxa enquanto eu estiver fazendo as minhas coisas. A lápis.
AMAURI
Sem nomes, você disse.
MALU
Sem nomes, eu disse. E diga que me ama apenas quando você estiver dentro de mim.
AMAURI
Direi.
MALU
Me surpreenda.
AMAURI
Irei te amar como nunca. (começa a se deitar)
MALU
Me fale coisas que eu nunca ouvi.
(começa a se deitar também)

AMAURI
Eu já te chamei de Camille Claudel?
MALU
Não farei os pés e as mãos para você. Deixarei a teu critério.

(vão falando simultaneamente)

AMAURI
Olga Benário.
MALU
Billie Holiday.
AMAURI
Tarsila.
MALU
Erêndira.
AMAURI
Rosa Luxemburgo.
MALU
Sarah Kane.
AMAURI
Edith Piaf.
MALU
Frida Khalo.

AMAURI
Clarice.
MALU
Pagu.
AMAURI
Anne Frank.
MALU
Eu sou uma cidade para você. E você toca Chet Baker de fundo em Amsterdam pra mim.
(recomeça Chet Baker)

AMAURI
Meu saxofone.
MALU
Vou adorar morrer nos teus braços.
(luz em resistência ao som da música)
FIM

Responda sinceramente